Fantasmas do passado

 

    “O que significa elaborar o passado?”, pode nos perguntar Adorno, que viu seus contemporâneos negarem o brutal passado recente que viveram na Alemanha nazista. A história queria por eles ser esquecida. Duro e vergonhoso demais para ser lembrado, esse desmesurado e violento recorte temporal, apelava de modo excessivamente forte para as consciências que retrospectivamente olhavam para trás e se davam conta do tamanho do absurdo que havia ocorrido. Um lapso de tempo devastador que não cabia em suas narrativas e identidades, por ser muito disforme, desumano, abissal. Melhor então excluírem ou arrefecerem em suas memórias isso que é inominável para aqueles que ainda portam alguma humanidade.  Tenta-se, então, ignorar o que passou. Fingir que não aconteceu. Apagar dos pensamentos, como se o ocorrido fosse um texto que houvesse sido escrito não com sangue, mas à lápis. 

Contudo, não se aprende com o esquecimento. A lição que fica é aquela passível de ser resgatada  pela memória. Portanto, a lembrança do que passou precisa ficar marcada. Nesse caso, melhor ainda que seja a fogo, para que não cesse de doer. Existem episódios que não podem ser lembrados com outro sentimento que não o da angústia. 

Ao elaborar a questão sobre o que significa elaborar o passado, Adorno se preocupa com  a incapacidade dos indivíduos de se lembrarem.  Produtos e produtores dessa história, eles foram os agentes e as vítimas do que se passou. Porém, ao não terem muito claro para si mesmos o que atravessou os seus destinos, eles não podem elaborar um sentido para os acontecimentos e, desse modo, são incapazes de constituírem uma memória consciente e, por meio dela, superar o que pegou as suas vidas de assalto. Mas por quais motivos é tão difícil que isso ocorra? Por que é que diante de um episódio tão recente - nesse momento histórico específico - vemos quase generalizar-se uma disposição para “negar ou minimizar o ocorrido”? 

O que aconteceu só pôde ter emergência no bojo de uma sociedade desesperada e miserável. A violência que se espalhou entres esses homens e mulheres reflete a mediocridade de suas almas. Temos, então, indivíduos extremamente perturbados e danificados pela vida, incapazes de resolverem os próprios conflitos de maneira diplomática. Ao fazerem despontar o que há de pior, constatamos ali a ausência da dimensão subjetiva que nos torna humanos. Nesse sentido, encontramos entre essas pessoas subjetividades distorcidas, empedernidas, mutiladas, incapazes da dimensão alteritária que nos compõem enquanto possíveis sujeitos autônomos. Por isso, empobrecidos que são, a disposição para negar o que ocorreu pode ser explicada por uma impossibilidade de simbolização do ocorrido. Isto é, uma ausência de trabalho psíquico. 

Vivendo vidas banais, num sistema social precário e degradante, os indivíduos não conseguem constituir, no decurso de suas próprias vidas, um entendimento que não seja superficial do mundo e das coisas. Sem experiências que os façam aprender sobre o universo em que vivem, são incapazes de fundar uma individualidade ou um mundo subjetivo, onde a dimensão do pensamento se coloca como instância de exame e julgamento crítico da realidade. Para além disso, não conseguem fundar um mundo interior que lhes seja próprio porque são incapazes de constituírem memórias.  No extremo, não possuem sequer material para construírem uma narrativa acerca da história de suas próprias vidas. 

Nossa sociedade, com a vida que impõe aos indivíduos, promulga “a imagem terrível de uma humanidade sem memória” (p. 35). As relações sociais e as relações de trabalho conduzem as pessoas a um tipo de funcionamento mecânico e automatizado, reduzindo-as, em grande medida, a centros de reações comportamentais. Para o que a sociedade exige de seus integrantes, a memória não cumpre papel relevante. Na cadência da produção industrial a memória se torna obsoleta, pois ela “procede sempre em ciclos idênticos e pulsativos, potencialmente de mesma duração, e praticamente não necessita mais da experiência acumulada” (p. 35).  

Na mesma medida em que a memória torna-se dispensável, a subjetividade se encontra na situação de não mais ser necessária. A sociedade se encarrega da função de coordenar e organizar de maneira mais eficiente as formas de agir e reagir do indivíduo em cada caso. O mundo objetivo passa a administrar todas as esferas da vida individual. Desse modo, tudo que poderia fundar um mundo interior, isto é, todos os processos componentes de uma subjetivação, são de certo modo extintos no interior da sociedade - “O que é o mesmo que dizer que a memória, o tempo, e a lembrança são liquidados pela própria sociedade burguesa em seus desenvolvimento [...] Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento" (p.35). 

Por isso, não se deve esperar que o mundo proporcione por si mesmo, em sua dinâmica de funcionamento, a dignidade humana aos indivíduos que abriga sob seus auspícios. O sujeito, portador de uma individualidade, é dispensável. Serve à sociedade de maneira muito melhor um autômato, um ser capaz de obedecer os comandos vindo de seus superiores sem questioná-los, sem colocar sob reflexão as condições de trabalho e vida às quais se vê submetido. O mundo interior, onde a memória se abriga, assim como os pensamentos próprios, os sentimentos, as dúvidas, os desejos, serve apenas como obstáculo para uma sociedade pragmática. Aquele que por acaso se vê indagando-se acerca da legitimidade dos princípios sociais estabelecidos pode encontrar dificuldades em se adaptar plenamente. Logo, ele dificulta a si mesmo o seu sucesso na vida social. 

O esquecimento, no mundo administrado, obedece as tendências sociais dominantes. Os desmemoriados, assim como máquinas, operam melhor as tarefas cotidianas. Nesse modo intensamente adaptativo de ser, o indivíduo se identifica ao espírito de sua época e acaba sendo, de certa maneira, recompensado por isso. Sobre essa adaptação, Adorno afirma que “O progresso individual de quem reage nesses termos é favorecido de imediato. Quem não se ocupa com pensamento inúteis não joga areia da engrenagem” (p. 36).  Portanto, num mundo desprovido de sentidos e possibilidades que se definam para além do existente, o caminho das fórmulas prontas se apresenta como o mais viável para aqueles que, desprovidos de história, não conseguem conceber outros roteiros senão os já prescritos pela indústria produtora das formas de vida dominante.  

Na realidade hostil em que vivem, as pessoas não encontram quase nenhuma alternativa a essas expectativas do mundo administrado. De modo geral, a sociedade não assegura a existência dos indivíduos e marca constantemente aquilo que eles ainda têm de consciência com a lembrança de que estão sob ameaça de vida caso não cedam sua vontade aos desígnios do mecanismo social. No fim, “Se as pessoas querem viver, nada lhes resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia; conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam de seu próprio eu” (p. 46). 

Nesse processo de desenvolvimento social, podemos concluir, os indivíduos são expropriados da própria dimensão psicológica. O mundo objetivo se impõe como algo irresistível e totaliza as maneiras individuais de ser. Como não há memória, tempo, lembrança, não há também sequer o indivíduo em si. O que circula no campo social são os espectros fantasmagóricos de algo que foi, anteriormente, a possibilidade de uma existência humana. Na concretude do que se impõe, essa possibilidade latente tem sido forçada a planos da realidade que dificilmente são acessados.  E impossibilitados de fundarem uma vida a partir de valores e desejos próprios, cultivados em uma história permeada de experiências que elaborariam perspectivas e modos de ser baseados na singularidade da trajetória pessoal, aos indivíduos não resta outra possibilidade que não seja a de se apoiarem nas referências sociais dadas pelo poder. Incapazes, portanto, de fundarem uma individualidade que apontaria  para eles uma direção, os indivíduos se agarram ao que lhes é oferecido pelas agências exteriores. Isso se dá por uma necessidade intrínseca e quase desesperadora que esses indivíduos têm de colocar alguma ordem no caos que compõe as suas existências. E aí mora o perigo, pois “A necessidade de uma tal adaptação e identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial autoritário” (p. 46). 

Quando a realidade é composta por elementos escassos e padronizados, o indivíduo se desenvolverá em planos em que o sempre igual constituirá um horizonte unidimensional de compreensão do todo. A repetição interminável de padrões constrói um entendimento limitado pelo idêntico, no qual o diferente não pode se congregar por não ser capaz de encontrar espaço para a sua assimilação. Nesse caso, o sujeito constitui um entendimento de interioridade que se confunde com o de exterioridade. Privado de experiências que negam o sempre idêntico, ele não pode constituir uma diferenciação entre si mesmo e o mundo, por isso ele mesmo e sua realidade se misturam num amálgama narcísico. O narcisismo, enquanto incapacidade de construir divisões bem definidas entre o eu e o não-eu, identifica-se, necessariamente, com o existente. Ou seja, suas coordenadas são compostas por meio da única realidade que ele pôde conhecer - uma realidade tão desértica que para preencher suas extensas lacunas ele projeta a sua própria imagem, compondo, assim, um universo em que ele próprio é o centro. 

Em suma, o sujeito narcísico é aquele que não é capaz de conceber a dimensão alteritária. Em seu reduzido e empobrecido mundo, sua obsessão é a de encontrar meios para a confirmação de sua própria inclinação à onipotência. Assim, desenha-se no seio do narcisismo o potencial autoritário. Nesse sentido, Adorno afirma: “Personalidades com tendências autoritárias identificam-se ao poder enquanto tal, independentemente de seu conteúdo. No fundo dispõem só de um eu fraco, necessitando, para se compensarem, da identificação com grandes coletivos e da cobertura proporcionada por eles” (p.40). Ou seja, incapazes de autonomia, precisam desesperadamente da submissão a poderes que possam contrabalancear a sua própria insignificância. A identificação com o poder, seja ele qual for, aplaca a angústia de sua impotência e atende suas demandas de grandeza. 

Uma vida que consegue constituir a possibilidade de memória não se lança cegamente ao domínio do outro. A memória, a lembrança e o tempo são características daqueles que puderam construir uma narrativa sobre suas próprias vidas. A história que evocam sobre si mesmos, só pode ser contada se for composta por um texto que se desenvolve progressivamente em conteúdo. Isso significa que os sujeitos históricos, carregam consigo um mundo interior próprio, inaugurado por experiências que os significaram e que, de algum modo, permitiram que eles pudessem sair da prisão estática de uma dimensão espacial em que o tempo se encontrava congelado.  

A dimensão da experiência proporciona ao seu sujeito o relacionamento com o novo. Quando este se apresenta, promove desarranjos no interior da estrutura subjetiva, anteriormente concebida, para que uma nova organização possa surgir. O desarranjo produz arranjos até então inéditos para que novas significações possam ser alocadas no interior do sujeito. Este, na inflexão da experiência, se desdobra sobre si mesmo e se reelabora, tornando-se também alguém novo. A experiência ressignifica continuamente o indivíduo. Produz para ele, em uma processualidade contínua, novas possibilidades. Revela constantemente potências que até então se encontravam latentes. Possuidor de referências próprias, rico em recursos subjetivos, amparado por anteparos simbólicos conquistados por sua história pessoal, esse sujeito não-idêntico emancipa-se da necessidade de subjugação e controle. A isso, Adorno pode completar: “A elaboração do passado como esclarecimento é essencialmente uma tal inflexão em direção ao sujeito, reforçando a sua autoconsciência e, por essa via, também o seu eu” (p. 51).

Depreende-se disso, que elaborar o passado é poder significá-lo. Subtraí-lo da história é um mecanismo de defesa de indivíduos simbolicamente empobrecidos. Protegem-se pelo esquecimento porque sua fragilidade os torna incapazes de encarar e dar sentido às contingências da própria vida. A memória é constituída quando o passado nela encontra seu lugar, seja ele qual for. Ao trauma do que passou é necessário meios de simbolização para que ele não ganhe ascendência sobre os processos psíquicos do indivíduo, paralisando-o. A compulsão à repetição que nos aprisiona em um modo de funcionamento em que nossa vontade é suspensa, é resultado dos fantasmas do passado que ainda nos assombram. Para se libertar o indivíduo precisa se conciliar com eles. É imperativo revisitar as margens inóspitas da consciência para conseguir resgatar a própria experiência do limbo, onde se encontra perdida, e dar a ela um lugar e um sentido no registro da memória. O passado precisa ser resolvido para que não volte a se repetir, para que não ecoe no presente pelo fato de ainda permanecer incompreendido. Para Adorno, “tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se permanecemos no simples remorso ou se resistimos ao horror com base na força de compreender até mesmo o incompreensível” (p. 49).

O futuro, portanto, depende da elaboração do passado. Ele será liberado enquanto possibilidade quando o passado encontrar o seu lugar na memória histórica, seja ela a do indivíduo ou a da civilização. Afinal, ainda vale a repetida máxima de Edmund Burke: “Um povo que não conhece a sua história está fadado a repetí-la”. Logo, esclarecer as determinações do passado, o seu percurso de emersão e suas linhas de força, bem como as consequências que traz para o presente, permitirá que se exerça o domínio sobre ele, ao invés de o contrário. E no caso específico do passado referido por Adorno, a saber, o da Alemanha nazista, ele afirma: “O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (p. 53). 

Para concluir, podemos afirmar que a elaboração do passado tem como objetivo a superação deste; nos piores casos, uma ruptura - desde que consciente- com as suas determinações. Para isso precisamos ser capazes de acessá-lo e compreendê-lo. O que, sem sombra de dúvida, requererá coragem. Enfim, quando deixarmos para trás o velho, poderemos ser recompensados por horizontes inexplorados, em que se abrem possibilidades inéditas para a criação do que ainda não podemos sequer imaginar.


Referências:

ADORNO, T. W. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2020.