Valores anticomunitários

 

    Freitas (2015, p. 243) chama-nos a atenção para o fato de vivermos em uma civilização sem regras civilizacionais. Adaptamo-nos, portanto, enquanto seres pretensamente sociais, a um estado de coisas que contraria os termos comunitários que deveriam reger uma sociedade. Adaptamo-nos, no interior da vida social, a condições de selvageria predatória e, logo, desumana. Naturalizamos, como fatos incontornáveis, situações de sofrimento, exploração, humilhação. E o mais assustador é o “fato de isso não gerar um sentimento de indignação, que deveria ser forte o suficiente para impedir que tais situações voltassem a ocorrer” (FREITAS, 2015, p. 243).

Esse conformismo coloca em cheque a dignidade humana. Tolera-se o intolerável. Habitua-se ao que qualquer pessoa com um pouco mais de sensibilidade sentiria como absurdo, ilógico, irreal. Por quanto tempo aceitaremos esse estado de coisas? Por quanto tempo pode-se resistir sem sucumbirmos? Aliás, será que já não perecemos? A adequação de todo um povo a esse regime de submissão aponta que a desesperança tomou conta das pessoas, que se sentem inertes e impotentes frente a um poder que parece impassível. Aceita-se os termos da sujeição e tenta-se manter a própria vida obedientemente, sem querer criar problemas maiores para si mesmo. Para Hobsbawm, citado por Freitas (2015, p.243) “nos habituamos à normalidade daquilo que nossos pais [nossos antepassados] [...] teriam considerado a vida em condições desumanas”.

Em meio a essa confusão, já não se pode mais ter certeza sobre nada. Os valores, que não sejam os do mercado, encontram-se esvaziados. Não há mais referências sólidas o bastante para nortear as nossas condutas de maneira que nos possibilite um sentimento de segurança e de estar fazendo o que é correto. Os “valores universais”, que a filosofia antiga tanto se esforçou por estabelecer, a partir de uma investigação da própria estrutura inerente e objetiva da realidade do mundo e dos indivíduos, tornaram-se puramente subjetivos e ganharam um caráter utilitário. Vive-se no indeterminado, numa crise simbólica que não parece ter fim: “Viver na incerteza é traumático. Viver na incerteza de significados e valores é ainda mais. [...] O trauma moderno não é um acontecimento, mas um estado de coisas, pois é contínuo” (HELLER apud FREITAS, 2015, p. 244).  

Os valores éticos e morais que, na filosofia antiga, visavam estabelecer as condições possíveis para se viver uma boa vida, são afugentados do campo social pelo modelo de vida capitalista, principalmente em seus termos neoliberais. Tudo se transforma em seu oposto quando, dentro de uma sociedade, a centralidade é deslocada para o indivíduo, e não mais para a comunidade da qual eles fazem parte. Quando o lema é “nenhum por todos e cada um por si”, regredimos a um estado primitivo de coisas, onde a sociedade não pode mais, em termos rousseaunianos, servir como garantidora da segurança do indivíduo na medida em que ele troca a sua liberdade natural pela sujeição de seus instintos às regras sociais. 

O intuito da psicologia comunitária seria reparar esse estado de coisas. A psicologia social comunitária e da libertação quer assumir um compromisso com a totalidade e “contribuir para a transformação social e libertação das formas de opressão e exploração na vida cotidiana” (FREITAS, 2015, p. 244). Para Freitas (sic), o trabalho da psicologia comunitária dentro de uma sociedade capitalista abre um campo de contradições, já que contesta os valores anticomunitários fomentados por esse modelo de sociedade e, portanto, coloca-se como uma prática essencialmente anticapitalista. Os pressupostos da psicologia comunitária, que visam criar um campo de solidariedade, vão de encontro aos valores neoliberais, questionando-os em sua legitimidade e criando um apelo crítico naqueles que são afetados pela sua atividade. 

  Uma das principais tarefas de uma psicologia comprometida politicamente com o coletivo é promover a própria despsicologização dos problemas que assolam os indivíduos. A sociedade incivilizada, que cria situações cruéis “que aviltam de algum modo a condição humana”, atribui “‘causas’ psicológicas para situações que são derivadas das condições de desigualdades sociais, econômicas, culturais e/ou políticas” (FREITAS, 2015, p. 243). Para escapar dessa lógica que encobre os problemas sociais através da individualização destes, se faz necessário, para um psicologia consciente de seu papel libertador, entender como ocorre os atravessamentos da realidade objetiva na subjetividade dos indivíduos. “Considerar as determinações estruturais e conjunturais evita que se cometa o erro de assumir explicações baseadas, precipuamente, nos aspectos individuais e internos das pessoas como responsáveis pelos mais diferentes problemas” (FREITAS, 2015, p. 247).  

Talvez, quando o indivíduo perceber que seus problemas pessoais são consequências de um modelo de sociedade doente – e por isso adoecedor –, ele tome para si a responsabilidade política de transformação. Talvez, por meio desse trabalho da psicologia comunitária, de desvelamento das contradições do real, encontremos caminhos para a reconciliação com a nossa natureza e para com a vida em sociedade. Talvez encontremos caminhos para a edificação de uma sociedade sob valores sólidos, fundamentados em bases filosóficas sérias, que tomem os termos justiça, liberdade, felicidade e fraternidade como imperativos essenciais para a vida humana. 




Referências

FREITAS, M. F. Q. Desafios éticos na prática em comunidade: (des)encontros entre a pesquisa e a intervenção. Pesquisas e práticas psicossociais. São João del-Rei: v.10, n.2, 2015, p. 242-253.