Modo-indivíduo

Os modos de subjetivação dependem dos discursos que circulam no campo social e de como eles atravessam os indivíduos, que a eles, necessariamente, são submetidos em seu processo de socialização. Com o advento da modernidade e a ascensão dos ideais liberais, que rompiam com a dogmática religiosa e fundavam, pela primeira vez, uma noção de individualidade própria, a subjetividade foi referendada por um modelo que a reduzia aos limites do indivíduo. A verdade, antes revelada e transcendental, é agora um elemento compositor da individualidade. Por isso, Barros (2007, p. 318) afirma que, no que tange ao indivíduo, “A verdade estará guardada, como tesouro a ser descoberto, em sua intimidade, em seu interior”. 

Quando a verdade se colocava num espaço exterior a esses indivíduos, podemos dizer que suas subjetividades eram menos individuais do que coletivas. Antes, a religião institucionalizada impunha princípios e fazia circular discursos de verdade que acometiam a todos e, de certa maneira, orientava a conduta coletiva de modo generalizado. Havia, portanto, uma ordem extraindividual de subjetivação que era totalizante. As vidas individuais se reduziam às categorias rígidas das instituições religiosas e a individualidade, enquanto lugar de diferenciação e autonomia, não podia se realizar. Com o questionamento dessa lógica de poder, principiado por transformações no campo social, econômico, político e filosófico, o discurso religioso perdeu o seu caráter de verdade e, assim, o seu poder. Logo, os indivíduos se tornaram moralmente órfãos. A partir disso, foi inaugurado um espaço inédito de liberdade individual para exame de valores e deliberação de condutas. Dessa forma, “o indivíduo se fez o modo de subjetividade dominante” (BARROS, 2007, p. 317).

Contudo, a ruptura com a verdade revelada, ao invés de inaugurar um campo aberto e diferencial de subjetivação, pautada na multiplicidade e num movimento de transformação contínua, apenas  deslocou o campo de totalização da subjetividade do exterior para o interior do indivíduo. Segundo Barros (2007, p. 316), “A redução dos modos de constituição da subjetividade ao do modo-indivíduo tem sido uma das maneiras utilizadas para afirmar concepções fechadas, unitárias e totais para os seres humanos”. Isso decorre do fato de que, se a verdade agora está interiorizada, “O indivíduo referendado pelos ideais liberais, será impulsionado à busca de um reforço de si” (BARROS, 2007, p. 318).

 Isto é, os indivíduos agora estão sob o domínio de um funcionamento regido pelo princípio de identidade, em que cada um é autoidêntico, ignorando-se o campo das relações com os objetos exteriores cuja força irrompe nas vidas individuais, determinando-as. Ignorando-se, portanto, a própria história de formação, os indivíduos entendem-se como autodeterminados, produtores de si mesmos. Toda dimensão de heteronomia é relegada ao passado histórico. Isso torna as forças objetivas, que determinam a subjetividade, invisíveis aos olhos do sujeito moderno. Acreditando-se livres, encontram-se em um estado em que é difícil perceber a própria sujeição. Então, buscar a verdade que lhes compõem, ou seja, buscar tornar-se idêntico a si mesmo, é buscar a identidade entre eles mesmos e as formas sociais que os ensejaram. Isso alimenta uma ideia estática de sujeito, na medida em que ele não se diferencia do mundo em que emerge. 

Por isso, podemos concluir que, no modo-indivíduo, as subjetividades encontram-se aprisionadas em si mesmas. Isso produzirá consequências catastróficas para a vida social.  Em um mundo em que os indivíduos voltam-se para si, enquanto seres autodeterminados detentores da própria verdade, o campo da realidade exterior, onde se dão as relações intersubjetivas, fica comprometido. Ao voltarem o olhar exclusivamente para dentro, os indivíduos entram num modo de funcionamento narcísico, propositor de um individualismo que prejudica a vida comunitária, na medida em que provoca uma dessolidarização das relações. A ideia de individualidade que se adquire a partir dessa lógica é mediada por uma relação de exclusão com o outro. O indivíduo tanto mais se afirma na medida em que nega a alteridade. Consequentemente, emerge, no campo intersubjetivo, o que Freud (2010) denominou de narcisismo das pequenas diferenças. O que provoca cisões e segmentações violentas no interior da sociedade, colocando sua coesão em risco. 

A sociedade capitalista tem no modo-indivíduo de subjetividade o desdobramento necessário de seu modo de produção. Mobilizados pelos princípios do livre mercado e da propriedade privada, os indivíduos agem unicamente a partir de seus interesses pessoais e, a partir desse mecanismo egoísta, o capitalismo encontra o seu bom funcionamento. A busca pela vantagem individual atropela o outro enquanto ser humano provido de vida, história e afetos, ao instrumentalizá-lo no percurso da consecução dos próprios fins. Sabemos que, sob esse modo de produção, tudo é reduzido à mercadoria. 

Nessa medida, podemos entrever que nas relações sociais estabelecidas a dimensão de humanidade se perde. Tudo vai sendo planificado ao funcionamento do mercado e a sociedade como um todo vai promovendo uma padronização sem limites de suas formas, na medida em que controla todas as esferas da vida através do princípio mercadológico. Assim, dentro da sociedade, a dimensão das experiências possíveis vão se tornando empobrecidas.  E a partir de um entendimento dialético, que prevê que os indivíduos ganham forma a partir dos discursos que circulam no meio social e das relações que estabelecem com o mundo, compreendemos que as subjetividades também vão se empobrecendo. 

A individualidade que o indivíduo pensou adquirir com o advento da modernidade não se realizou. Pois para pensarmos a individualidade, precisamos ter no horizonte a ideia de diferenciação. Esta só se torna possível se o indivíduo se engaja em experiências cada vez mais profundas com a alteridade, que transformarão o seu si-mesmo em outra coisa que não era antes. Segundo Barros (2007, p. 321), “Experimentar é procurar alterar os processos hegemônicos de subjetivação em curso”. Nesse sentido, a experiência promove uma ruptura com a totalização do indivíduo quando coloca este no interior de um processo em que o outro o atravessará, numa dinâmica de negação de sua própria identidade cristalizada. A identidade entendida como uma afirmação de si, fechava o indivíduo num circuito repetitivo que tinha como resultado o seu empobrecimento e superficialidade. A identidade negativa, que prevê uma subjetividade aberta à transformação, resulta num aprofundamento das faculdades do indivíduo e no enriquecimento de seu eu, na medida em que amplia e aprofunda seu relacionamento com o mundo. Esse indivíduo voltado para fora, será legítimo portador de uma individualidade, pois suas experiências com a diferença e com a multiplicidade o tornarão único. 

Horkheimer e Adorno (1973, p. 53) afirmam que quanto maior o individualismo, menor a individualidade. A individualidade pressupõe um investimento voltado para o mundo e sua diversidade, pressupõe relações com a alteridade para que se possa construir a ipseidade. O individualismo diz respeito à lógica narcísica, em que o indivíduo investe apenas em si mesmo. Por isso, em nome de um mundo e de sujeitos verdadeiramente livres, a ruptura com o princípio de identidade se faz necessário. Para que esse horizonte se concretize, precisaremos de uma nova abertura paradigmática no campo ético-estético-político: “a de uma subjetividade que experimente, se arrisque em outros modos de composição; a de uma subjetividade que se produza heterogênea, sendo ao mesmo tempo heterogenética; a de uma subjetividade que esteja comprometida com os processos coletivos que a produzem” (BARROS, 2007, p. 323).





REFERÊNCIAS:

BARROS, R, B. Grupo a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007.

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, S. Obras completas, vol. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1973.