Voluntarismo compulsório

Como podemos entender o trabalho dentro do modo de produção capitalista? Insiste-se enfaticamente que o trabalho realizado pelo indivíduo dentro da soberana lógica do mercado é, inequivocamente, alienado. Por não objetivar atender as necessidades humanas em seus caracteres naturais e sociais mais básicos, a sociedade capitalista funciona de modo a produzir formas de vida em que os indivíduos precisam se desdobrar para manter a própria possibilidade de existência, atendendo as demandas inexoráveis de uma ideologia industrial. A vida é uma sobrevida na medida em que, como ferramentas, os indivíduos atuam com o único propósito de manter a grande máquina de dominação funcionando. De certo modo, na luta pela sobrevivência que se instaura no interior da vida social – como uma espécie de extensão e atualização da que ocorria na vida natural –, os indivíduos acabam sendo produtores de sua própria subjugação. Porém, a partir da perspectiva individual, como pensar que isso seria uma escolha? O campo de possibilidades de ação é asfixiado pela angustiosa e urgente necessidade de autoconservação. Ofuscados pelo medo do que ameaça tornar inexequível a existência de seus próprios corpos, torna-se difícil enxergar no horizonte outras realidades possíveis que se encontram latentes no tecido que compõe o mundo objetivo. Desse modo, penso que falar sobre servidão voluntária é algo que precisa ser realizado com bastante cuidado. Não há voluntarismo se há coação. A coação pode não ser diretamente física, mas já existe instaurada na cultura e, portanto, nos imaginários, aparatos simbólicos que violentam os indivíduos a aderirem modos de vida que se voltam contra eles mesmos. As modulações de uma falsa consciência se dão de modo muito sorrateiro e se iniciam muito cedo na vida dos indivíduos, bem como todo o medo e culpa internalizados como dispositivos de reflexividade e autorregulação do próprio sujeito. A servidão que reproduz e promove esse estado de coisas seria mesmo voluntária? É claro que não podemos negar que em algum nível o seja. Porque todo modo insatisfatório de vida leva o pensamento a cogitar o seu contrário a partir da necessidade que se sente de superação de um estado que conduz ao sofrimento. Mas até que nível, a partir de uma ideologia que leva ao fatalismo e à resignação, o sujeito pode pensar que o novo é de fato tão praticável que valeria a pena esforços para empreendê-lo? Os autossacrifícios de um trabalho alienado levam o indivíduo a estados lamentáveis, mas, pelo menos, são estados que já são conhecidos e, por isso, antecipáveis. Há uma zona de conforto em que repousa o desespero do próprio sofrer. Por outro lado, a ideia de subversão de todo esse mecanismo de funcionamento, além de suscitar o medo de uma repressão inexorável, não adianta nenhuma garantia de possibilidade de sucesso pelo qual valeria a pena o sacrifício de se lançar combativamente rumo ao indeterminado. Nossos instintos preferem nos preservar do que é desconhecido.  Para o corajoso ato do salto no escuro, é necessário que o indivíduo seja forte o bastante para romper com o que insistentemente foi forjado e reiterado em seu corpo como disposição à submissão. No entanto, não é incomum que se descreva a servidão voluntária como uma “patologia social de sequestro da subjetividade”. Se os indivíduos são expropriados de suas subjetividades, como seria possível que eles encontrassem meios para compreender a sua própria condição e, assim, a necessidade de transformá-la? Se não possuem uma dimensão subjetiva substancial, resumem-se às determinações da objetividade que os circunda. Com a subjetividade sequestrada, isto é, despossuídos de uma dimensão interior onde se realiza a capacidade de análise e juízo, como poderiam escolher entre servir ou não servir? Reificados até o âmago, a sua instru-mentalidade servil não pode ser tão voluntária assim, já que o elemento do arbítrio lhes escapa do horizonte. Contudo, como não pensar em outros modos de vida quando os que se apresentam são tão insuportáveis? Como não entender que o próprio trabalho, e o modo de vida que instaura, é autodestrutivo, na medida em que o sujeito se sente cada vez mais distante de si mesmo e daquilo que ele deseja enquanto estado de satisfação? E por quais motivos o menor sentimento de infelicidade não se demonstra como o suficiente para se impor como promotor de uma insurgência? Há, contida nas entrelinhas da existência social, uma promessa sempre maior e mais implacável de infelicidade para aqueles que não se conformam com a infelicidade cotidiana comum a todos. Há uma ameaça de aniquilação, simbólica ou não, para aqueles que questionam os termos do poder. Por isso, se diz, quanto ao trabalho ao qual somos condenados como escravos: “ruim com ele, pior sem ele”. Se nos conformamos com o que reconhecemos ser a fonte de impedimento da viabilização de nossa própria liberdade, podemos entender que há sim certo voluntarismo. Mas, por outro lado, se o ímpeto de ruptura com esse estado de coisas já vem acompanhado com um sentimento terrível de angústia, também podemos entender que esse certo voluntarismo é compulsório. Logo, deveríamos refletir e nos questionar cuidadosamente se o que se chama servidão voluntária, na verdade, não seria voluntária coisa nenhuma.