Vida regulada

 

    “Sexualidade são construções sociais”. Podemos também entender que sexualidade são sujeições sociais. Até mesmo quando há uma tentativa de dissidência da norma. A sexualidade é vivida de acordo com as possibilidades de um corpo que somente as regulações do poder permitem emergir. Isto é, toda sexualidade está limitada a um corpo aprisionado por normas que instauram nele um tipo muito específico e limitado de sensorialidade e de capacidade de experienciação de si mesmo e dos objetos do mundo. Os corpos, portanto, são construções sociais. 

Esse corpo, orientado por uma sexualidade, encontra nela, e no tipo de relação que ela torna possível, uma identidade. Essa identidade, imediatamente, condena esse corpo a uma determinada performance, a um determinado modo de ser, em que a renúncia a outros modos é irrevogável para que se adeque a uma determinada categoria social que lhe conceda uma existência reconhecível. A busca pela identidade é uma busca pelo reconhecimento, pela afirmação de si ante o mundo, porém essa afirmação impede que o ser e corpo do ser sejam o que ainda nunca foram. 

Portanto, os corpos, e os seres que são passíveis de os habitarem, são modelados por rituais sociais que introduzem em seus interiores uma normalização simbólica que traduz para eles um sentido reificado de existência. São corpos que, a priori, entendem-se centralmente como instrumentos de trabalho, pois só assim podem conservar outras dimensões em que o próprio corpo adentra.  Essa esfera instrumental determinará, implacavelmente, as outras possibilidades de atuação e fruição do corpo. O corpo só pode projetar no mundo os próprios elementos que habitam e perfazem o seu entendimento. Se sua interioridade tem como cerne algo que o configura como um objeto funcional e útil, só enxergará, em sua relação com a exterioridade, o que é função e utilidade, reduzindo toda a sua experiência a um paradigma utilitarista e mercadológico.  

Não é por acaso que serão aceitos no mercado de trabalho, não apenas os corpos que estritamente atendem aos modelos mais hegemônicos promovidos pela indústria, mas também qualquer corpo que possa atender com eficácia as exigências do mercado. Por isso "em decorrência de empenho superior, associado à maior flexibilidade de horários e à possibilidade de realocação entre as sedes das empresas, por não possuírem vínculos matrimoniais e filhos como limitadores, a inserção de sujeitos não heterossexuais no ambiente de negócios tem sido interpretada como desejável por um número crescente de gestores".

O mercado sempre incorporará em sua lógica de funcionamento as mudanças que cedo ou tarde pressionam o tecido social. A diversidade encontra no modo de produção capitalista o fim da substância que sua forma encobre. O capital absorve o que poderia ser o novo quando este está para nascer. Ele se apropria e se adapta a partir do que o tensiona como contraditoriedade. Não há dissidência que não seja regulada pelos próprios termos do poder, não há subversão que ele não consiga prenunciar como adaptável às suas categorias. A publicidade das grandes empresas evidencia isso. Então, resta-nos descobrir quais modos de resistência são inadaptáveis por seus termos, e até onde os modos de resistência existentes já não são modos de submissão a eles. 




Referências

Carrieri, A. de P., Souza, E. M. de, & Ana Rosa Camillo Aguiar, A. R. C. (2014). Trabalho, Violência e Sexualidade: estudo de lésbicas, travestis e transexuais. Revista de Administração Contemporânea, 18(1), 78-95.